Artigo com participação de docentes da UEPB alerta para impactos da Covid-19 sobre pesquisas etnobiológicas
A crise global causada pela pandemia de Covid-19, junto com várias medidas para combatê-la, tem impactado a atividade de cientistas de todas as áreas, sobretudo quanto às pesquisas que envolvem questões sociais e ambientais, como é o caso da Etnobiologia. Esse panorama é discutido em artigo recentemente publicado na revista Nature Plants, que conta com a participação de 29 pesquisadores de 17 países diferentes, em uma iniciativa liderada pela pesquisadora do New York Botanical Garden (Estados Unidos), Ina Vandebroek.
Dentre os coautores do trabalho, estão os docentes da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Rômulo Alves, coordenador do Laboratório de Etnobiologia (Câmpus I), e Tacyana Oliveira, coordenadora do Laboratório de Peixes e Conservação Marinha (Câmpus V). A Etnobiologia é uma ciência complexa, que integra conhecimentos locais e globais, conecta culturas e enfoques acadêmicos e relaciona aspectos biológicos e sociais da experiência humana com o ambiente.
O artigo apresenta reflexões dos autores discutindo como a pandemia afetará o futuro das pesquisas etnobiológicas. Tais reflexões foram reunidas em torno de três eixos temáticos: como a pandemia impactará os modos de vida das comunidades indígenas e locais, bem como o uso e manejo dos recursos naturais; como a crise afetará futuras interações entre pesquisadores e as comunidades; e quais devem ser as novas prioridades da Etnobiologia como disciplina.
Os pesquisadores da UEPB que participaram do artigo alertaram para os impactos da pandemia nas pesquisas etnozoológicas, ou seja, aquelas que envolvem as interações humanas com animais, particularmente em relação ao uso e comércio de fauna. Eles ressaltam que essas atividades estão intrinsecamente relacionadas à transmissão de doenças entre animais e seres humanos (zoonoses) e, portanto, começaram a sofrer restrições com o avanço da pandemia. O principal marco de restrições veio por parte do governo chinês, que proibiu a caça, comércio, cultivo e consumo de todas os animais silvestres terrestres que sejam consumidos pelos humanos.
A China é um país com fortes laços culturais em relação ao uso de animais, principalmente para alimentação e para a Medicina Tradicional Chinesa (TCM), que é um sistema milenar usado para o tratamento de inúmeras doenças. Apesar da importância do uso dos animais para os chineses (e diversos outros povos ao redor do mundo), muitas das espécies correm risco de extinção e já existem muitas discussões sobre o uso não sustentável desses animais. Portanto, a proibição do governo chinês, mesmo que às custas de uma pandemia, segundo os pesquisadores, é muito bem-vinda para além da prevenção ou minimização da transmissão de patógenos através de animais.
Mas existem vários “poréns”, conforme os autores do artigo. Um deles é o fato de as restrições serem apenas aplicáveis a animais que são usados como alimento. Mas há animais vendidos em mercados, por exemplo, que são usados como remédios e não necessariamente são considerados “comida”. E há aquelas espécies que são usadas tanto como alimento como para remédio. Então, surge o questionamento: como identificar esses usos e como tratá-los dentro das restrições? Esse é um cenário que se replica, em maior ou menor escala, em diversos outros países do mundo.
Essa e outras questões, segundo os professores Rômulo e Tacyana, estão diretamente relacionados ao papel da Etnozoologia, uma vez que os estudos etnozoológicos são importantíssimos e, muitas vezes, indispensáveis para se obter dados sobre os usos e o comércio de animais. Em todo o mundo, vários grupos de pesquisa realizam trabalhos que envolvem idas a comunidades locais em áreas rurais, e também urbanas, como mercados, feiras livres, escolas, entre outros, onde são obtidos dados sobre quais espécies são comercializadas ou utilizadas, quais as quantidades que são capturadas e vendidas, quais os preços, qual a origem e o destino dos animais, para que serão utilizados e de que forma.
Todas essas informações, de acordo com Rômulo e Tacyana, são essenciais para se entender como funciona a relação entre pessoas e animais, como também os benefícios e malefícios que ela pode trazer para ambas as partes. Não raro, só é possível obter essas informações através de estudos etnozoológicos e uma vez que as atividades de comércio e consumo de fauna se tornam ilegais, a obtenção de dados fica ainda mais difícil.
Uma outra questão muito importante a ser levantada em relação a medidas de restrição (e proteção, quando é o caso), geralmente, animais terrestres e aquáticos são tratados de forma diferente. Isso se reflete nas medidas tomadas pela China em relação à pandemia, onde as proibições estão restritas a animais terrestres. Isso exclui, portanto, os animais aquáticos, incluindo peixes, pepinos do mar, caranguejos, moluscos e outros que são amplamente utilizados para a alimentação e na TCM.
“Certamente, já está havendo uma mudança nos padrões de consumo e comercialização da fauna aquática, que também apresenta inúmeras espécies ameaçadas. E essas mudanças precisam ser avaliadas, pois levantam preocupações adicionais para a conservação desses animais. Mas não apenas os animais são afetados por toda a reviravolta que a pandemia tem causado. Os aspectos sociais também devem ser considerados e um dos papeis da Etnozoologia também inclui avaliar os impactos das restrições de uso de fauna sobre as populações humanas que dele dependem”, destacam os professores.
Isso inclui desde avaliar os conflitos gerados pela pandemia de forma geral, por exemplo, aqueles associados às restrições legais da comercialização da fauna, até auxiliar no diálogo entre comerciantes, consumidores/usuários e instituições ambientais, para minimizar esses conflitos. “De fato, a pandemia tem revolucionado o modo de vida de todos no planeta e a Etnobiologia, como tantas outras disciplinas, também precisará se ajustar a esse novo cenário, às mudanças e novas problemáticas – além de todas as outras que já existiam. Devido a sua característica multidisciplinar, ela terá um papel importantíssimo não só no entendimento dessa nova realidade entre os humanos e o ambiente, mas também na elaboração de medidas de exploração sustentável da fauna que levem em consideração a realidade socioeconômica das comunidades humanas, mas também a conservação das espécies animais exploradas”, ressaltam os docentes.
O artigo pode ser conferido, na íntegra, clicando AQUI.
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