Pesquisador do curso de Relações Internacionais analisa resultado das eleições nos Estados Unidos e as repercussões para o Brasil

10 de novembro de 2020

Com doutorado em Ciência Política e Sociologia pela Universidad de Deusto (Espanha), experiência em Economia Política Internacional, politica e mídia, e docente da área de Relações Internacionais, o professor Filipe Reis Melo tem acompanhado o processo eleitoral estadunidense não apenas como cidadão de um país que possui diversas relações com os Estados Unidos, mas, como pesquisador que tem um olhar apurado para a temática em questão. A partir disso, foi realizada a entrevista exposta abaixo, com o objetivo de apresentar reflexões e esclarecimentos sobre essas eleições que são um dos assuntos mais comentados na atualidade.

1. Você tem acompanhado os desdobramentos do processo eleitoral dos Estados Unidos?

Sim. Para os estudiosos das Relações Internacionais é fundamental acompanhar os acontecimentos políticos do país hegemônico do Sistema Internacional, pois os eventos naquele país têm repercussão em todo o mundo.

2. Qual a repercussão da eleição de Jo Biden numa escala global? O que esse resultado pode significar para o mundo?

Podemos dizer que grande parte do mundo estava à espera da vitória de Joe Biden, já que a administração Trump foi marcada por posições individualistas no cenário internacional, recusando-se a fomentar o multilateralismo, ainda que fosse só retoricamente, e iniciando uma guerra comercial contra a China. No âmbito doméstico, Trump fomentou movimentos extremistas e racistas, e por essa razão, organizações mais progressistas dentro dos EUA trabalharam fortemente para a vitória do Partido Democrata.

Biden já anunciou que colocará de volta os EUA no Acordo de Paris, do qual Trump retirou os EUA. No entanto, as pessoas não devem se enganar, pois quando os democratas estão no poder, o discurso pode até ser mais politicamente correto, mas as ações mantêm-se, de forma geral, de apoio aos interesses das grandes corporações estadunidenses e, na Política Externa, de apoio a regimes autoritários que se alinham aos EUA, como Arábia Saudita, Egito e tantos outros; e ao mesmo tempo, fustigam países que tentam trilhar uma via de desenvolvimento soberana e autônoma, como são os casos de Cuba, Venezuela e Irã.

3. Em que medida o resultado das eleições nos Estados Unidos repercute no Brasil?

Em termos econômicos, não vejo grandes mudanças, vez que os negócios são decididos especialmente entre as empresas privadas brasileiras e estadunidenses, ou seja, seguem uma lógica de mercado. Biden deve querer manter boas relações comerciais com o Brasil porque os EUA mantêm um saldo comercial positivo, enquanto que o Brasil amarga déficit no comércio bilateral com os EUA. Possivelmente, Biden tentará abrir caminho para as corporações estadunidenses se aproveitarem da política econômica liderada pelo ministro Paulo Guedes que vende grande parte do patrimônio público brasileiro, como é o caso da Petrobras, da Casa da Moeda, do Cerpro, entre outras.

No aspecto político, a derrota de Trump não é boa para o governo Bolsonaro que se alinhou incondicionalmente ao governo Trump em troca de nada. Bolsonaro fica cada vez mais isolado internacionalmente, pois esfriou a relação do Brasil com o BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), azedou as relações do Brasil com dois parceiros importantes da União Europeia, França e Alemanha, e se distanciou de países latino-americanos vizinhos como da Argentina, da Bolívia e da Venezuela, bem como do México e até mesmo do Chile. A decisão da política externa brasileira de virar as costas para a América Latina foi muito negativa porque retirou do Brasil a liderança que exercia na América do Sul. A volta dos EUA ao Acordo de Paris, irá pressionar o governo Bolsonaro a rever a sua política ambiental que até o momento tem-se mostrado uma política que atende única e exclusivamente aos interesses imediatos dos grandes proprietários de terra em detrimento da preservação ambiental, dos pequenos produtores rurais e dos povos indígenas.

4. Por falar em repercussão e desdobramentos, a pandemia da Covid-19 pode deixar alguma herança nas iniciativas e posturas políticas adotadas pelas principais nações em todo o mundo?

Sem dúvida que sim. A pandemia colocou em evidência a importância de serviços públicos de qualidade, ao mesmo tempo que demonstrou que serviço de saúde privado não é capaz de combater adequadamente este tipo de crise. Entre os países ricos, os EUA são os únicos que não possuem um sistema público de saúde universal e foi justamente o país cuja população mais sofreu com a pandemia. Além da saúde pública, a crise da COVID-19 também mostrou a importância das empresas públicas, como as de pesquisa e de produção de equipamentos de saúde em geral, como respiradores, EPI’s. Não faz sentido o incentivo ao livre comércio como fim em si mesmo, como defendem os arautos do neoliberalismo. Grande parte dos países do mundo, inclusive o Brasil, a França e os EUA, precisaram importar remédios, vacinas e equipamentos fabricados no exterior, na sua maioria na China. Finalmente, a pandemia demonstrou que qualquer país que queira se desenvolver precisa investir em pesquisa para ter um mínimo de autonomia. O país que não colocar em prática programas arrojados de investimento público em pesquisa e tecnologia permanecerá sempre dependente e não alcançará um grau de desenvolvimento e de bem-estar satisfatórios para a sua população.